NINA SIEGAL
DO "NEW YORK TIMES", EM AMSTERDÃ
Com sua cama cor de mel comprimida num canto de um quarto aconchegante de paredes azuis, a tela de 1888 "O Quarto em Arles", de Vincent van Gogh, é reconhecida de imediato por aficionados da arte, sendo marcada pelas tonalidades contrastantes que eram a marca registrada do artista. Mas será que nossa percepção do quadro muda quando ficamos sabendo que Van Gogh pintou as paredes originalmente de violeta, não de azul, ou que ele não foi tanto um pintor que lutava contra seus demônios interiores quanto um artista reflexivo, que traçava metas e buscava alcançá-las?
Essas dúvidas são levantadas por uma análise nova, que levou oito anos para ser feita, de centenas das telas de Van Gogh e de sua paleta, seus pigmentos, sua correspondência e seus cadernos. A análise foi feita por cientistas da empresa petrolífera Shell, em colaboração com a Agência Holandesa de Patrimônio Cultural e os curadores do recém-renovado Museu Van Gogh, de Amsterdã, que possui o maior acervo mundial de obras do pós-impressionista holandês.
De acordo com o diretor do Museu Van Gogh, Axel Rueger, a pesquisa não resultou em "novos insights espantosos" que levassem a história da vida de Van Gogh a ser reescrita, mas ela pode modificar a compreensão que se tem do temperamento e da personalidade do pintor. Os resultados do estudo serão revelados na exposição "Van Gogh at Work" (Van Gogh trabalhando), que será inaugurada na quarta-feira e incluirá 200 pinturas e desenhos. Cento e cinquenta das obras são de Van Gogh, e as restantes de artistas contemporâneos dele, incluindo Paul Gauguin e Emile Bernard.
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Quadro "The Bedroom", de Van Gogh |
"Descobrimos de modo mais claro que Van Gogh foi um artista muito metódico, algo que contraria o mito generalizado de que ele teria sido um homem maníaco, talvez levemente demente, que simplesmente jogava tinta sobre a tela de maneira espontânea", comentou Rueger. "Na realidade, ele conhecia muito bem as propriedades dos materiais que utilizava, sabia como usá-los e criava composições muito pensadas. Nesse sentido, o estudo traz insights importantes que nos abrem uma visão melhor de Van Gogh. Ele foi um artista muito voltado à realização de metas."
Usando microscópio de elétrons e a técnica da espectrometria de fluorescência de raios-x, que revela os componentes de pigmentos sem tirar amostras invasivas, os pesquisadores descobriram que, desde muito cedo em sua vida artística, Van Gogh usou molduras de perspectiva para se orientar e desenhou sobre a tela para obter a representação correta de proporções e da profundidade de campo em suas paisagens. Mais tarde, à medida que foi ganhando habilidade, ele abriu mão desses recursos. Como muitos artistas, Van Gogh retrabalhou determinadas telas muitas vezes, para aperfeiçoar o efeito que desejava.
Para Nienke Bakker, curadora da exposição, o insight mais importante proporcionado pelo estudo é sobre a paleta de Van Gogh.
"Hoje sabemos muito mais sobre os pigmentos usados por Van Gogh e como podem ter mudado de cor com o passar do tempo", comentou a curadora. "Isso é crucial para nosso entendimento das obras dele e para definirmos o melhor tratamento a dar às obras. As cores ainda são muito vibrantes, mas devem ter sido muito mais fortes ainda [quando ele as pintou], especialmente os vermelhos. Alguns dos vermelhos eram muito mais fortes ou desapareceram por completo desde que Van Gogh os pintou."
Ralph Haswell, cientista principal da Shell Global Solutions (que colocou seus laboratórios e pesquisadores à disposição do museu), disse que na virada do século 20, artistas estavam apenas começando a comprar pigmentos prontos, em vez de misturá-los eles mesmos em seus ateliês. "Uma das desvantagens de viverem num ambiente em transformação, onde os pigmentos ainda eram muito novos, era que as pessoas nem sempre sabiam o que aconteceria com os pigmentos", ele comentou. "A indústria química estava crescendo tremendamente na época e lançando cores de todos os tipos, mas ninguém sabia por quanto tempo essas cores se conservariam estáveis." Foi o caso do violeta usado por Van Gogh para pintar as paredes de seu quarto em Arles. Como o vermelho da tinta violeta se desvaneceu em pouco tempo, provavelmente enquanto Van Gogh ainda estava vivo, o que restou foi apenas o azul com que o vermelho deve ter sido misturado.
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Tela "Noite Estrelada", obra do pintor holandês Vincent Van Gogh |
Para Bakker, é possível que Van Gogh não tenha se importado com isso, já que o pintor em grande medida autodidata não enxergava nenhum de seus trabalhos como uma obra acabada. Ele via cada trabalho como um estudo que o ajudava a definir seu estilo.
"Ele queria expressar sua maneira individual de enxergar o mundo, e cada obra de arte que criava o levava para mais perto dessa meta", explicou a curadora. "Mas ele nunca estava satisfeito."
O tom original das paredes do quarto produz uma imagem mais calma, disse Marije Vellekoop, diretora de coleções, pesquisas e apresentações do Museu Van Gogh. O roxo e o amarelo "não eram vistos como cores que formam um contraste forte, como as pensamos hoje", ela explicou. "Havia algo que Van Gogh queria exprimir naquele quadro: tranquilidade e um ambiente de descanso."
Vellekoop disse que a teoria das cores vê o roxo e o amarelo como contrastes complementares. "Teoricamente, essas cores se reforçam. Para mim, as paredes roxas do quarto suavizam a imagem. Isso confirma que Van Gogh se pautou pela teoria tradicional das cores, usando roxo e amarelo, e não azul e amarelo."
O desaparecimento dos tons de vermelho teve consequências diferentes em outras telas. Por exemplo, em imagens de árvores frutíferas em flor, algumas flores hoje brancas foram originalmente cor-de-rosa, mas o vermelho desapareceu. Para Vellekoop, esse fato pode levar a mudanças na identificação das espécies de árvores retratadas pelo artista.
De certa maneira, o uso de cores complementares enquadra Van Gogh nas tradições de seu tempo. Embora ele fosse radical no uso que fazia de cores fortes, disse a curadora, "ele seguia a teoria tradicional das cores, que já estava escrita na primeira metade do século 19". Ainda segundo Vellekoop, "muitos dos artistas amigos de Van Gogh liam aqueles livros" mas não fizeram uso tão ousado dos pigmentos. Van Gogh fez experimentos com técnicas de aplicação de cores diferentes das técnicas empregadas por seus contemporâneos, incluindo Henri de Toulouse-Lautrec, que diluía suas tintas e usava cores planas.
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Clássico autorretrado do pintor holandês, que morreu na França em 1890 |
Por um período breve, Van Gogh seguiu o exemplo dos pontilhistas, cujas imagens eram feitas de muitos pequenos pontos ou manchas de cor. As cores altamente contrastantes das telas posteriores de Van Gogh são associadas ao momento em que ela alcançou a maioridade como artista, desenvolvendo seu estilo próprio, nos últimos dois anos de sua vida.
O fato de que ele pode ter empregado uma paleta ainda mais forte, com mais vermelhos e roxos, indica que sua obra pode ter se aproximado mais da de seu amigo Paul Gauguin. Nesse sentido, suas escolhas em termos de cores podem ter sido mais seguras e menos iconoclásticas do que imaginamos.
Mas, disse a curadora, os novos insights sobre as cores de Van Gogh não necessariamente mudam nossa visão da psicologia do artista. "Acho que isso não revela nada de novo sobre seu estado de espírito. Em Arles, Van Gogh usou muitas cores. Estava muito otimista em relação à vida, a seu futuro e a suas possibilidades de vender seus trabalhos."
Ele também estava ansioso pela chegada de Gauguin a Arles, disse a curadora, mas tinha uma atitude quase maníaca em relação a isso. "Quando a cooperação com Gauguin fracassou e Van Gogh foi para o asilo, nós o vemos mais sombrio e deprimido. Suas cores mudam e ele mergulha mais nos tons ocres, tonalidades diferentes de verdes e marrons. Uma paleta mais reprimida. Sim, associamos as cores a seu estado de espírito, mas isso não quer dizer que quanto mais azul havia em suas telas, mais ele estivesse deprimido."
A partir de setembro, duas das versões criadas por Van Gogh de "O Quarto em Arles" serão mostradas lado a lado na exposição, uma delas a versão que está no Museu Van Gogh e outra cedida pelo Instituto de Arte de Chicago. Van Gogh pintou três versões da tela em 1888, e hoje as três mostram as paredes de um azul claro. Cientistas e conservadores criaram uma reconstrução digital de como a tela pode ter sido quando Van Gogh primeiro a pintou, com as paredes violetas, e a reconstrução também estará na mostra. "É diferente e um pouco estranho", comentou Bakker.