“Dircé”, escultura do italiano Lorenzo Bartolini (1777-1850), em exposição no Louvre. REPRODUÇÃO
PARIS - Há várias maneiras de descobrir as 35 mil obras expostas nos 60.600 metros quadrados das labirínticas salas do Museu do Louvre. No ano passado, 9,7 milhões de visitantes — um recorde — percorreram sinuosos caminhos por entre as coleções de arte divididas em oito departamentos. Mas à margem do enigmático sorriso da Mona Lisa e de outras incontornáveis obras de sucesso do acervo, o guia Bruno de Baecque optou por se aventurar por caminhos menos trilhados e mais voluptuosos. Certa vez, em uma de suas visitas com um grupo, uma das turistas comentou diante da pintura “A morte de Sardanapalo”, do pintor francês Eugène Delacroix (1798-1863):
— Este é o quadro mais erótico que já vi na minha vida.
Foi a centelha para que criasse um circuito singular, intitulado provocativamente de “As mais belas bundas do Louvre”. Numa visita de cerca de uma hora e meia, Baecque mostra bundas artísticas, muitas, pintadas ou esculpidas. De vários tipos, formas, estilos e épocas. De homens, mulheres e também de um hermafrodita. Para auxiliar na observação do derrière, o centro da visita, foi confeccionado um utensílio próprio, um triângulo de cartolina seguro por uma haste e com um furo para ajustar o olhar: pelo orifício é possível isolar do todo a parte do corpo desejada, oferecendo uma outra perspectiva. Mas o motivo do erótico circuito, segundo ele, é uma sedutora desculpa por trás do principal objetivo: introduzir um novo olhar na obra de arte. No trajeto, o contexto histórico e a biografia do artista estão em segundo plano, e sempre aparecem depois que a obra — e a bunda nela incluída — já foi devidamente analisada pelos curiosos e muitas vezes surpresos integrantes do grupo, limitado a 15 pessoas.
— Não é uma aula de História da Arte. Trata-se de uma verdadeira exploração do olhar, para que percamos as referências que já temos e descubramos novas sensações. O olhar é feito de camadas, e libera coisas quando olhamos uma, duas vezes, e por meio de diferentes ângulos — explica.
Além fazer o grupo circundar as obras, se inclinar ou se ajoelhar para obter novos ângulos de percepção, o guia provoca a interatividade, estimulando os turistas a definirem com uma palavra as bundas observadas. Diante de “Dircé”, escultura do italiano Lorenzo Bartolini (1777-1850), vêm as impressões: moderna, simétrica, bela, hiperatual, pêssego, damasco, tomate. No jogo do olhar proposto por Baecque, com uma simples mudança de perspectiva o traseiro de Dircé passa a ser “menos puro”, de “diferente volume”.
Neste vai e vem com a obra, a intenção é potencializar uma fórmula do artista contemporâneo Robert Filliou (1926-1987): “A arte é o que torna a vida mais interessante do que a arte.” Por isso, faz seu grupo exercitar o olhar diante de “Psiquê revivida pelo beijo do amor”, do italiano Antonio Canova (1757-1822).
— São dois amantes que se beijam. Podemos treinar intensamente nosso olhar aqui, e quando observarmos cenas semelhantes na vida real, na rua, num café, as sensações surgirão de forma mais rápida e diferente — defende.
Já as bundas “tônicas” da escultura em bronze “Mercúrio e Psiquê”, do holandês Adrien de Vries (1545-1626), são umas das “maiores do Louvre”.
— Não sei se vocês já tiveram a oportunidade de ver bundas tão grandes de tão perto — brinca ele. — Aqui é interessante observar a composição no espaço, na forma de um losango, formada junto com a coxa e a barriga da perna.
Após um exercício de observação alternada de frente e verso de “Escravo morrendo”, obra considerada uma das mais sensuais de Michelangelo (1475-1564), o circuito alcança seu “pico erótico” na Sala E. Trata-se de um corredor de ligação que acolhe a escultura “Centauro que enlaça uma bacante”, do sueco Johan Tobias Sergel (1740-1814).
— É a primeira mão na bunda da visita — diz o mestre de cerimônias, sem nenhuma cerimônia. — São dois personagens ardentes. Mas esta obra não se resume a uma mão na bunda. Além de sua força erótica, exprime um carinho, uma delicadeza. E quando mudamos de lado, pela esquerda os dedos aparecem mais penetrantes; quando se vai na direção da janela, a mão por trás desaparece, dando uma outra percepção.
O grupo então se depara com a citada pintura “A morte de Sardanapalo”, uma mescla de erotismo e morte. O próprio artista fez questão de explicar a cena: assediado por rebeldes em seu palácio, o rei da Assíria ordena a seus escravos e oficiais degolar mulheres, pajens, cavalos e cães. “Nada que tenha servido aos seus prazeres deveria sobreviver”, escreveu Delacroix. A atenção de Baecque se concentra na amante favorita do soberano, de costas em primeiro plano, com uma adaga apontada em seu pescoço, e nas alterações de nuances de cores e de formas conforme o ângulo de visão proposto.
— Se a observarmos daqui — diz o guia, levando seu grupo para a extremidade direita à tela — seu corpo se afina. É quase uma imagem em 3D, temos a impressão de que ela sai do quadro. Isolada, a sedução que ela opera sobre nós nos faz esquecer o resto.
A mesma experiência é feita com “A grande odalisca”, do também francês Ingres (1780-1867), na busca de novas sensações pela observação do quadro à distância, quando o corpo adquire outros contornos, com as costas mais alongadas.
— As pessoas só querem saber quantas vértebras a odalisca tem a mais, mas a verdadeira aventura do olhar está no que vemos quando estamos perto e longe. Este efeito que estamos observando só se tem a dez, 12 metros de distância — sustenta.
Algumas bundas além, o circuito se encerra com “Hermafrodita adormecida”, escultura romana do século II e retrabalhada pelo italiano Bernini (1598-1680), que acrescentou um leito ao personagem andrógino estendido lascivamente. De um lado mulher, de outro, homem, a peça de mármore intriga e por vezes constrange turistas no Louvre.
— É uma das obras mais fortes do percurso. É a canção “Walk on the wild side”, de Lou Reed — diz Baecque.
O professor Robert Bussière, de 54 anos, apreciou a visita pela possibilidade de ver algumas obras originais, normalmente ignoradas, por meio de um olhar alternativo. Madeleine Capiaux, de 67, aposentada, destacou a diversidade da seleção das obras, muitas delas ausentes dos circuitos tradicionais do Louvre, e também a abordagem do guia:
— Conhecer a arte pela História da Arte é importante, mas aqui é a emoção que conta. A emoção que uma obra exprime, seja qual for.
Bruno Guérin, de 44, fotógrafo e grafista, foi simples e direto ao ser questionado sobre o que descobriu na visita:
— Bundas magníficas!
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