TESOURO PERDIDO
Egito busca repatriar antiguidades expostas em diversos museus do mundo
Especialistas debatem se país tem condições de garantir a segurança e a conservação das peças. Por Fernanda Dias
Não é só pelo uso constante de um chapéu de aba larga que o arqueólogo mais famoso do Egito, Zahi Hawass, se assemelha com o célebre personagem Indiana Jones. Assim como nas histórias da ficção, o chefe máximo das antiguidades do país africano luta pelas relíquias de sua nação. Ao longo dos últimos anos, ele tem buscado recuperar peças que foram levadas para o exterior ilegalmente e que estão expostas em diversos museus do mundo atraindo milhares de turistas. As recentes ondas de ataques no Egito, no entanto, culminaram na destruição de alguns artefatos que estavam em instituições do Cairo, o que aumentou ainda mais os debates em torno da devolução desses monumentos. A principal questão é se o governo tem condições de garantir a segurança e a preservação desses importantes registros da História da humanidade.
O professor Ciro Flamarion Cardoso, da Universidade Federal Fluminense (UFF), considerado a autoridade máxima em se tratando de história do Egito no Brasil, considera que em princípio as peças devem ser devolvidas, mas ressalta que o mais adequado é uma avaliação de cada caso, já que a questão é mais complicada do que parece à primeira vista.
Ele explica que até meados do século XX, o país tinha status semi-colonial, daí a dificuldade de se impedir as escavações ilegais e o saque das antiguidades, que eram vendidas a colecionadores privados ou a museus do exterior. Ciro lembra que, tal como os mármores de Elgin (do Partenon de Atenas), muitas peças egípcias foram preservadas adequadamente em museus da Europa e dos Estados Unidos numa época em que o país árabe não tinha condições de preservar o seu acervo:
“Os grandes museus dotados de importantes coleções de antiguidades egípcias não são só lugares onde as peças são expostas ao público, mas também centros importantes de pesquisa, ensino, treinamento e restauração. Também nessas instituições são organizadas expedições de escavação e programas de cópia e preservação de monumentos ameaçados, que muitas vezes são realizados no próprio Egito”.
O professor ressalta ainda que o Serviço de Antiguidades, órgão que autorizava as escavações, fazia a divisão do que era achado entre o Museu Egípcio do Cairo e as entidades estrangeiras: “Pelo menos nesses casos, as peças saíam do Egito de forma legal e com conhecimento das autoridades. Houve, sem dúvida, quando nem mesmo existia o Serviço de Antiguidades, mas também depois, exportação absolutamente ilegal. Não pode se tratar, então, de simplesmente desmantelar as coleções de todos os grandes museus a partir de uma devolução indiscriminada dos objetos ao Egito”.
O diretor da Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Ivan Coelho de Sá, lembra que a musealização da Pedra de Roseta – que foi encontrada por um soldado do exército francês, mas acabou no Museu Britânico – foi importantíssima para sua preservação, e, sobretudo, para sua decifração, que permitiu o conhecimento dos textos egípcios. Mas, ele ressalva que o argumento dos europeus de que garantiram a conservação destes acervos também é questionável:
“Os bens culturais, ao serem retirados de seus sítios, sofreram inúmeras barbaridades e mesmo posteriormente, foram submetidos a intervenções inadequadas de conservação e de restauração. Exemplo disto são as métopas e outros elementos de mármore do Parthenon que sofreram processos de limpeza que os deixaram totalmente brancos, descaracterizando-os definitivamente. Mas, sem dúvida, o argumento europeu da preservação é forte e só pode ser contestado na mesma altura, ou seja, o Egito tem que oferecer as mesmas condições de conservação para os acervos que são reivindicados”.
Sá explica que o marco referencial da legislação específica sobre a alienação de bens culturais foi a Carta de Atenas, de 1931, que deixa clara a responsabilidade do Estado na salvaguarda dos monumentos. Em 1964, a UNESCO dispôs sobre a importação, a exportação e a transferência ilícitas de bens culturais, recomendando que os Estados instituíssem órgãos oficiais de proteção e que fizessem acordos bilaterais e multilaterais para tratar da restituição dos bens ilicitamente adquiridos.
“Há uma tendência internacional totalmente contrária a importações e exportações ilícitas e que favorecem uma política de devolução dos bens que foram retirados ilegalmente de seus países de origem. Isto não quer dizer que os museus que possuam acervos egípcios devam ser esvaziados, e que as coleções sejam precipitadamente devolvidas. Deve ser um processo consciente e cuidadoso, apoiado em documentação e legislação adequadas”.
Sá ressalta ainda que as devoluções precisam contar com uma estrutura logística que garanta o cumprimento de todas as normas de conservação necessárias ao transporte e ao acondicionamento destas coleções: “Isto certamente não será um processo fácil de ser realizado e, caso aconteça, demandará várias décadas”.
No fim de janeiro, antes mesmo de os protestos contra o regime do presidente Mubarak eclodirem na Praça Tahrir, a Alemanha negou o pedido de Hawass para a devolução do busto da rainha Nefertiti, que se encontra no Museu Neues, em Berlim. Na lista de peças que o conselho que o arqueólogo representa luta para devolver ao Egito estão ainda a Pedra de Roseta e o busto de Ramsés II (ambos estão em museus de Londres); a máscara do príncipe Kanefer e estátuas de dois arquitetos das pirâmides (nos EUA) e o Zodíaco de Dendera (no Louvre). Com quem essas antiguidades ficarão no futuro no futuro é uma incógnita, digna da magnitude das peças.
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