22/10/2014

Os museus também têm sentimentos de culpa

A pergunta foi feita para inquietar: “Podemos descolonizar os museus?” Num congresso com portugueses, espanhóis e latino-americanos, a resposta foi óbvia. Mas como é que isso se faz? Com uma estratégia de proximidade, criando museus em que a jóia de um rei é tão importante como um pneu velho ou a fotografia de um avô que poucos conhecem e foi morto pela ditadura.
A Vitória de Samotrácia é uma das principais atracções do Museu do Louvre LOIC VENANCE/AFP
António Pinto Ribeiro começou com uma provocação: “Os museus ou são pós-coloniais ou não são nada.” À sua frente, no auditório do 8.º Encontro Ibero-americano de Museus (Lisboa, 13 a 15 de Outubro), sentavam-se portugueses, espanhóis e latino-americanos com responsabilidades no património.
O museu, continuou este ensaísta com formação em Filosofia e Estudos Culturais que hoje dirige o Programa Gulbenkian Próximo Futuro, começou por ser a instituição que “materializava a ocupação colonial do resto do mundo e a sua posse”, “arquivo ilustrado do poder” e “lugar de estabilidade das classificações e hierarquizações disciplinadas das raças e das espécies e dos cânones artísticos”, mas hoje precisa de se reinventar. “Podemos descolonizar os museus?”, perguntou, para responder em seguida: “Podemos. Devemos.” Mas como? E de que descolonização falamos? Da que se refere apenas aos impérios europeus?
“Descolonizar” aqui passa, sobretudo, pela releitura dos acervos dos museus ocidentais, muitos deles constituídos quando o mundo estava ainda dividido em impérios coloniais centenários, mas também pela abertura às comunidades onde estão instalados, tenham ou não uma ambição nacional.
Na sala, a ouvir Pinto Ribeiro, esteve Javier Royer Rezzano, coordenador do Sistema Nacional de Museus do Uruguai, que entende o termo num sentido lato. Para Rezzano, “descolonizar” passa pela libertação da perspectiva imperial dos acervos, mas também por uma versão de luta de classes dentro do museu, para o tornar mais inclusivo e o aproximar das comunidades que serve.
“Não podemos continuar a construir museus, na América Latina ou em qualquer outro lugar, com base nas colecções reunidas pelas elites económicas, políticas e culturais. Porque o museu, mesmo resultando de um processo histórico em que essas elites tiveram um papel importante, não pode ignorar as outras classes nem deixar de tentar falar com toda a gente.” Como exemplo de uma visão eurocêntrica e de um modelo desactualizado e sem preocupações inclusivas, Rezzano cita o Museu Histórico Nacional do Uruguai, em Montevideu, criação de uma junta militar, no qual não estão representados nem os trabalhadores, nem as mulheres, nem as comunidades indígenas. “É preciso mudar isto”, diz, se queremos que os museus continuem a reclamar um papel social, a ser construtores de identidade.”
Mas esta mudança não se faz sem a consciência de que o museu é também um território de conflito, em que se vão cruzar visões díspares em resposta a perguntas fundamentais: O que é uma obra de arte? A que nos referimos quando falamos de história nacional? Como se mostra o extermínio dos povos indígenas? E como é que se trabalha um período de subjugação a um poder colonial ou a uma ditadura? Estas e outras perguntas, garante Rezzano, vão expor as clivagens que existem dentro do próprio país: “A colonização não vem apenas de fora, é feita também a partir de dentro, é como a divisão Norte/Sul, que não é só global, existe na nossa própria casa”, observa. “O museu tem de falar de todos e com todos – ricos e pobres, dominantes e dominados, elites e excluídos –, porque, quer queira quer não, é um espaço político.”
Rezzano não defende o regresso a um “passado indígena” como projecto museológico, algo que “não faria qualquer sentido”, mas acha que sem a “descolonização” do modelo do museu-elite ou do museu-espectáculo estas instituições não podem continuar a reclamar relevância social na América Latina.
Alan Trampe, director das bibliotecas, arquivos e museus do Chile, e o brasileiro Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, curador e presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), concordam com Rezzano. Para o chileno, a fase que vivemos é de transição no que diz respeito à própria ideia de museu. “Hoje convivem museus tradicionais – mausoléus para guardar coisas, mais ou menos actualizados – com museus mais experimentais, a que no Chile chamamos sociais.” Estes últimos, explica, são feitos a partir das comunidades e, muitas vezes, recorrendo aos objectos, documentos e outros testemunhos que as populações trazem das suas casas.
“O museu ocidental, colonial, não nos serve, nem serve aos outros países da América Latina, porque continuamos a ter comunidades vivas ligadas ao património que queremos mostrar.” Trampe acredita numa premissa aparentemente simples: “Se queres aproximar o museu das pessoas, faz com que conte a história delas.”
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-museus-tambem-tem-sentimentos-de-culpa-1673458

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